Aborto: por que mudar a lei?
*Sandra Franco
Com a justificativa de que “a legalização do aborto vem
sendo imposta a todo o mundo por organizações internacionais inspiradas por uma
ideologia neomalthusiano de controle populacional”, o projeto de lei que prevê
alteração no atendimento a mulheres vítimas de violência sexual foi apresentado
à Câmara dos Deputados.
Na verdade, o enfoque do projeto é antes ideológico e não
uma preocupação verdadeira com a saúde pública. Tanto assim, que o fundamento
central do autor do projeto foi uma suposta necessidade de o país reagir contra
uma política de controle populacional imposta pelos Estados Unidos e outros aos
países subdesenvolvidos. E sobre a saúde da mulher, qual o argumento utilizado?
Nenhum.
Inconteste que qualquer debate que envolva a regulamentação
do aborto será sinônimo de polêmica. Assim, o sinal amarelo de alerta acendeu
no último dia 21, após a aprovação na Câmara dos Deputados do texto do Projeto
de Lei 5069 de 2013 que propõe também a alteração da redação do inciso IV, do
art. 3º, da Lei nº 12.845/13 adotando uma nova terminologia em substituição ao
termo “profilaxia” bem como a definição do que vem a ser “violência sexual”.
Além de modificar a lei atual sobre o tema, a proposta
também torna crime uma prática que hoje é uma contravenção - o anúncio de meios
ou métodos abortivos - e pune como crime quem induz, instiga ou auxilia num
aborto, com agravamento de pena para profissionais de saúde, que podem chegar a
ser detidos por 1 a 3 anos.
Sem dúvida, a comercialização ilegal de substâncias
abortivas deve ser combatida. Mas, há um mercado de outros produtos e medicamentos
traficados e vendidos ilegalmente que deveriam estar na mira dos parlamentares,
se a finalidade fosse cuidar da saúde da população.
Vale ressaltar que, em 2013, as mulheres passaram a ter a
garantia de que o atendimento seria “imediato e obrigatório” para questões de
aborto em todos os hospitais do SUS, com a aprovação da lei 12.845. Essa norma
assegura atendimento médico a mulheres vítimas de violência sexual. A lei remete a uma profilaxia da gravidez – o
que sequer corresponderia a um aborto tecnicamente, se for considerado o
fenômeno da nidação como o início de uma vida.
Sob o aspecto da saúde e políticas públicas, não se poderá
abandonar o conceito da prevenção e educação, quando possível. Na maioria das
vezes, a opção pelo aborto decorre da falta de planejamento da gravidez
associada a fatores sociais como ignorância, planejamento familiar, escassez de
recursos e grande número de filhos. Não informar à mulher seu direito ao aborto
legal, em caso de violência sexual, seria um atentado a todas as normas que
dispõe sobre o direito legal à informação e fere a autonomia do paciente.
A controvérsia quanto ao aborto reside no fato de que o
direito à vida não é absoluto. Para alguns, o Direito Constitucional (e
natural) à vida do feto precisa ser respeitado. Para outra corrente, a mulher
ou a menina faria jus ao direito à dignidade humana, ao direito de escolha.
Ocorre que não houve qualquer parlamentar que apresentasse
dados estatísticos para uma discussão fundamentada do tema. Sequer foram
apresentados números que justifiquem o entendimento da bancada evangélica e
católica no sentido de que houve aumento de abortos (ou da profilaxia da
gravidez) em razão da facilitação oferecida pela Lei 12.845/2013. Ora, a
redução de danos, enquanto política pública, não pode ser atacada com a
desculpa de que seja um aborto “disfarçado” ou uma tática de controle
populacional. Tampouco o aborto legal precisa de mais entraves, tais como o
boletim de ocorrência ou o exame de corpo de delito.
Ausentes esses dados, poderia ter sido citado pelos
parlamentares, por exemplo, que em abril de 2005, a Organização Mundial de
Saúde (OMS) informou que o número de casos de gravidez não intencional ou
indesejada foi estimado em 87 milhões por ano em todo o planeta. Mais da metade
dessas mulheres (46 milhões por ano) recorreu ao aborto induzido, sendo que 18
milhões o fizeram sem condições de segurança. Anualmente, por volta de 68 mil
mulheres morrem no mundo em consequência desses abortos desassistidos. Quantas
dessas mulheres são brasileiras?
Seria desejável que algum dos parlamentares apresentasse a
experiência de outros países que conseguiram reduzir o número de abortos e de
morte de mulheres com políticas públicas de assistência à mulher antes e após o
aborto. No entanto, tais constatações que serviram de base para a aprovação da
Leo 12.845 parecem não ter mais importância para aqueles que, em 2013,
aprovaram por unanimidade o então Projeto de Lei da Câmara (PLC) 3/2013.
É imediato e importante que o tema seja encarado de forma a
garantir o respeito à saúde da mulher, independentemente da situação, pois sua
dignidade está comprovadamente afetada pelos fartos casos de abortos
clandestinos, esterilidade pela perda do útero, traumas psicológicos
irreversíveis por condições degradantes dos locais e a morte de muitas
mulheres.
A regulamentação do aborto deve ser discutida fora de
qualquer âmbito religioso ou de interesses meramente partidários de alguns
grupos. Trata-se, sem dúvida, de uma questão de saúde pública.
O tema precisa ser enfrentado em conjunto com os
profissionais da saúde, a sociedade organizada e os legisladores. O auxílio do
Estado é fundamental para reduzir as mortes, as lesões físicas e morais
resultantes do aborto desassistido. Salvem a dignidade das mulheres!
*Sandra Franco é
consultora jurídica especializada em Direito Médico e da Saúde, presidente da
Comissão de Direito da Saúde e Responsabilidade Médico-Hospitalar da OAB de São
José dos Campos (SP), presidente da Academia Brasileira de Direito Médico e da
Saúde, membro do Comitê de Ética da UNESP para pesquisa em seres humanos e
Doutoranda em Saúde Pública
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