Incompetência põe em risco humanismo
na medicina
*Antonio Carlos Lopes
A relação entre o humanismo e a prática da medicina é objeto
de inúmeros estudos, pesquisas e artigos no Brasil e no mundo. São várias as
linhas de pensamento. Há, contudo, algumas premissas unânimes. Cito, por
exemplo, a que atribui a desumanização às falhas do sistema e à falta de
políticas de saúde consistentes.
Destaco, sem medo de errar, que parte do problema também se
deve à decadência do aparelho de ensino, à formação insuficiente, à
desvalorização do papel do médico. A turva visão social de alguns gestores é
outro motivador da medicina se afastar cada vez mais de sua essência.
Salta aos olhos nos dias de hoje o descompromisso com os
cidadãos por parte de hospitais de grande porte da rede pública. Seja para
manter privilégios de uma casta e/ou em virtude da incompetência
administrativa, há instituições de renome cancelando cirurgias e consultas,
garantindo apenas atendimento básico em urgência e emergência. Assim, mesmo com
ressalvas.
Evidentemente existe a agravante do subfinanciamento da
saúde. São de fato escassas as verbas da União, os estados também deixam a
desejar nesse quesito e os municípios não colaboram. Em todos os níveis,
mágicos da matemática maquiam contas para apresentar balanços em consonância
com a Lei Complementar 141/2012, que estabelece a destinação de verbas mínima
para a saúde.
Não podemos aceitar que gestores se apeguem à carência de
recursos para justificar o que é fruto de incapacidade e, às vezes, de má fé.
Se há pouco para gastar, que se gaste com responsabilidade e efetividade.
Muitas contas não fecham, pois impera a cultura do desperdício. Fica a
impressão de que não se pensa que alguém está pagando a conta.
Em hospitais com escolas médicas há mazelas ainda mais
graves. Como os exames são “subsidiados”, joga-se dinheiro público no lixo. Uma
investigação elementar mostrará que exames são solicitados sem controle e/ou
critério. Um residente pede um, chega outro em turno diferente e pede mais um e
assim segue. Uma auditoria facilmente encontrará o mesmo exame realizado três
vezes em 24 horas, com iguais resultados.
A gestão hospitalar deve ser exercida por quadros
qualificados e capacitados. Mas não é o que ocorre. Comumente ouvimos notícias
de hospitais tidos como de excelência com gestão extremamente precária; isso
porque quem exerce o cargo é incompetente, não tem formação adequada e, em
casos específicos, nem boa índole.
Gestão é uma ciência tão relevante quanto à cardiologia, à
pneumologia e assim por diante.
Em certas instituições, pessoas sem qualificação nem
conhecimento na medicina ditam normas esdrúxulas, capitaneiam o Conselho Gestor
sem base alguma. O resultado: desvio de verba, suplementações inadequadas, uso
do serviço público para tratamento de doenças particulares, desvio de função...
Em determinadas castas diretivas é fácil encontrar
indivíduos com suplementações salariais indevidas, que trabalham em outros
lugares quando deveriam honrar o que recebem do Estado, prestando serviço à
população.
Outro problema recorrente em hospital de ensino é que não
tem quem ensine. Os teoricamente responsáveis pela formação não aparecem ou
marcam o ponto (às vezes a distância, pela facilidade tecnológica) e vão para
outro emprego. Daí a solicitação de exames desnecessários, apenas por
curiosidade ou insegurança, sem indicação clínica, já que o aluno não tem
mestre.
Sou médico e professor à moda antiga. Paciente para mim tem
nome. Cuido de doentes não de doenças. Resgatar a boa prática da medicina, o
humanismo e a cumplicidade entre médico e pacientes são prioridades para
qualquer um que entenda o sistema de saúde como um direito básico do homem,
conforme consagrado no artigo 196 da Constituição Federal.
Deixo então registrada minha indignação, mas jamais perderei
e esperança nem a flama para lutar por mudanças. Assim, faço um chamado a todos
os médicos, profissionais de saúde e cidadãos a valorizar a qualidade de vida e
a dignidade humana em cada momento e campo profissional, em particular na
medicina.
*Antonio Carlos Lopes
é presidente da Sociedade Brasileira de Clínica Médica
Nenhum comentário:
Postar um comentário