sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

A crise hídrica e as ameaças à saúde pública


“A vida na fazenda se tornara difícil... No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido...”

“Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro dos animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas, esperou que a água marejasse e, debruçando-se no chão, bebeu muito”.    (Vidas Secas, 1938, Graciliano Ramos)

*Rodrigo Angerami

Os cientificistas atribuem às mudanças climáticas. Os gestores e governantes são responsabilizados pela inépcia crônica. Os mais conscientes relacionam ao desperdício da população. Os místicos culpam os humores de deuses e santos. Independentemente das hipóteses, explicações, justificativas e argumentos, algo até pouco tempo impensável para a grande maioria está posto: a crise hídrica é uma realidade, a segurança hídrica de boa parte do país está comprometida.

Muito se questiona como será possível se adaptar, contornar, “sobreviver” sem a abundância de água com a qual a população do estado sempre foi brindada, “hidratada”. Menor duração do banho, menos perda na cozinha... menos desperdício, mais racionalidade, mais rigor na fiscalização e na taxação. Entretanto, muito pouco, ou quase nada, vem sendo discutido em relação a um aspecto muito mais relevante do que as consequências da restrição à lavagem dos automóveis: o impacto da tão alardeada (e inesperada?), mas agora real, crise hídrica sobre a saúde pública, sobre os mais diversos prismas.

Em uma perspectiva mais “míope”, mas não menos importante, podemos imaginar os riscos à saúde das pessoas, “simplesmente” em decorrência do impacto de uma menor oferta de água sobre uma das principais medidas de prevenção e controle de doenças: o hábito da lavagem de mãos. Sabemos que essa prática figura como eficiente meio de prevenção de uma enorme gama de doenças: diarreias, conjuntivites, hepatites e gripe. Banhos não tomados podem se associar a uma infinidade de afecções e infecções dermatológicas. Isso sem mencionar a prevenção de disseminação de agentes infecciosos e controle de infecções em serviços de saúde. Some-se a isso as possíveis consequências das dificuldades para higienização e produção de alimentos, com consequente risco de transmissão de uma infinidade de microorganismos e intoxicações alimentares, de surtos.

Os problemas, entretanto, transcendem, em muito, o individual. Colocam, em diversas regiões do país, a saúde população, como um todo, sob risco. A menor vazão dos rios e a menor capacidade dos reservatórios levam a uma maior concentração de poluentes na água a ser tratada e distribuída em cada ávida torneira. Nesse contexto, falhas ou limitações nos processos de tratamento de água poderiam trazer efeitos de magnitude incalculável: extensos surtos comunitários de gastroenterites, por exemplo.

Alguns chamam de racionamento, outros de rodizio. Independentemente da denominação, a diminuição (seja fugaz, prolongada ou duradoura) da oferta de água já vem mobilizando inúmeras pessoas, famílias, bairros, setores diversos das cidades a buscar fontes alternativas do, cada vez mais, precioso líquido na esperança de verem suas necessidades básicas minimamente atendidas. Mais do que justo, totalmente compreensível. Muito, muito preocupante, entretanto. A eventual utilização de água imprópria para consumo humano, coletada a partir de minas ou adquirida a partir de caminhões-pipa que comercializam o produto sem a devida regulação ou fiscalização, pode vir a expor as pessoas a inúmeros agentes infeciosos - vírus, bactérias, protozoários - e a vários outros contaminantes, como metais pesados e outras substâncias químicas potencialmente nocivas à saúde. Gastroenterites, hepatite, intoxicações e, até mesmo, envenenamento são algumas das potenciais consequências.

Mais. A intermitência do provimento de água pode vir a culminar com surtos e epidemias, além das diarreias, de doenças (muito) bem conhecidas como a dengue e do “novato” Chikungunya. Mas como, se a chuva não veio, “teima” em não vir? Ledo engano daqueles que sempre acharam que o Aedes, vetor da dengue e do emergente Chikungunya, depende da água das chuvas. A estocagem antrópica, voluntária, programada, de água em reservatórios artificiais e impróprios para armazenamento (baldes, tambores, caixas de água e outros tantos sem proteção, sem tela, sem tampa) pode vir a criar verdadeiras “maternidades” do mosquito. Além disso, as elevadas temperaturas potencializam, em muito, as funções biológicas do vetor, sua capacidade reprodutiva e competência vetorial. Se os números de casos de dengue nas últimas epidemias não foram suficientes para demonstrar o quão insuficientes podem vir a ser as estratégias vigentes e utilizadas para o controle do Aedes, o crescente número de óbitos atribuíveis à dengue na temporada 2015 e a iminente introdução (e possível disseminação) do “debutante” Chikungunya poderá demonstrar o quão imprescindível é (e continuará a ser) a participação da sociedade, de cada família, de cada indivíduo no combate ao vetor. A população deve, de uma vez por todas, compreender que é um dos “acionistas majoritários” na luta contra a dengue e que sua participação não pode ser mais opcional, é um ato de cidadania.

Em uma nova era, de globalização de agentes infecciosos e vetores e dos extremos climáticos, mais do que nunca, o mundo deverá incorporar o conceito de que da saúde do ambiente dependerá, cada vez mais, a saúde da humanidade.

*Rodrigo Angerami é médico da Sociedade Brasileira de Infectologia

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